segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Violência...


Fiquei muito emocionada com o depoimento de um pai que perdeu o filho para o crack, no Rio de Janeiro. Este acontecimento trágico recente, que ficou visível para todos, por ter acontecido com um filho da classe média carioca, no seio da zona sul, vem dizimando vidas anônimas, direta e indiretamente, há anos. Apendi, com os anos de saúde pública, trabalhando com polulações negligenciadas e vulneráveis, como os usuários de drogas, profissionais do sexo, transgêneros e hiv positivos, acolher e cuidar dessa população. Pude conhecer as pessoas por trás dos estigmas e suas duras estórias de vida. Eles, mais que qualquer um, são provas vivas de que toda ação tem uma reação ou consequência. Muitos usuários de drogas, bandidos ou profissionais do sexo, tinham em comum um passado de abuso e abandono. Mesmo os que eram provenientes de uma classe econômica melhor. Famílias desestruturadas, maus tratos e abuso sexual na infância, violência e doenças psiquiátricas incompreendidas e negligenciadas, abandono institucional, principalmente por parte do Estado no que se refere a educação, permeiam esse universo com uma frequência muito maior do que se possa imaginar. Um caso marcante pra mim, e que ilustra bem tudo isso, é o de um paciente que acompanhei, dependente de cocaína, álcool, maconha e crack, que também trafica pequenas quantidades de droga na zona sul. Veio de uma família violenta, desestruturada, com histórico de uso e abuso de álcool e drogas. Iniciado no álcool com apenas cinco anos e nas drogas com sete anos. Sofreu todo tipo de violência física e psicológica ainda na infância, com piora dos horrores na adolescência. Sem proteção, sem carinho ou compaixão. O que se espera dessa vida? Quase impossível uma pessoa como essa se tornar um "cidadão de bem". Atendi esse paciente pela primeira vez há alguns anos, na época, já bem destruído fisicamente pelo crack e, totalmente devastado psicologicamente pela vida. Ficamos conversando por 3 horas eu acho. Fiquei impressionada com sua estória de vida. Ele ali na minha frente falando com pouca energia que lhe restava, muito emagrecido, sem esboçar qualquer sinal de emoção quando tocava em assuntos dos mais íntimos imagináveis. Apenas quando quis saber mais sobre sua relação com mãe e irmãos, percebi um olhar de tristeza e dor. Perguntava-lhe o que achava de ainda estar vivo. Difícil acreditar que apesar de tudo, tenha chegado aos 32 anos, mesmo parecendo ter uns 20 anos mais. Falava sobre sua trajetória íntima com as drogas e consequentemente com o tráfico solitário que fazia para sustentar o vício. Pensamos numa solução para mudar aquela vida miserável. Não tinha terminado nem a terceira série primária e com várias prisões no currículo, seria difícil procurar emprego. Falava que seu sonho era trabalhar como garçon num restaurante da zona sul do Rio e quem sabe um dia chegar a mètre. Tentou algumas internações para se livrar do crack, infelizmente o período para cada paciente numa clínica pública para recuperação de dependentes é muito curta. No caso do crack, ele mesmo sabia que não conseguiria se não fosse por pelo menos dois anos. Sentia raiva pela infância, por não ter podido brincar como criança e nem ter ido à escola. Sentia raiva do morador da zona sul, que o tratava com medo e desprezo durante o dia e à noite o procurava para comprar drogas. Sentia raiva da polícia, que sempre que o pegava com drogas, era espancado e lhe roubavam o dinheiro e as drogas. Se sentia menos triste quando raramente era tratado como gente. Achava que Deus olhava por ele, apesar de tudo. Contava que quando ia buscar a droga no Complexo do Alemão, voltava pra zona sul orando baixinho no ônibus pela madrugada. Sei que não me contava sua vida esperando pena, sabia que o período que precisava de alguma compaixão já tinha passado há muito tempo com o fim da infância. Ele sabe e, sempre deixou bem claro que ingressou numa viajem sem volta. Atualmente acho que se encontra em mais uma internação para tratamento da dependência ou mesmo, pode ter sido morto em algum canto da cidade. Ele, como muitos outros, não tinha como escapar da violência e nem de se tornar um instrumento dela.
Pra toda ação há uma consequência!

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